segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Rubem Alves / Frases e pensamentos

Rubem Alves (nasceu dia 15 de setembro de 1933, em Boa Esperança, Minas Gerais, Brasil).
Escritor de temas religiosos.

"Amar é ter um pássaro pousado no dedo.
Quem tem um pássaro pousado no dedo sabe que,
a qualquer momento, ele pode voar”
Rubem Alves

 
Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas.

Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do vôo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o vôo.

Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são pássaros em vôo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o vôo, isso elas não podem fazer, porque o vôo já nasce dentro dos pássaros. O vôo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado.
Rubem Alves

 "Se fosse ensinar a uma criança a beleza da música
não começaria com partituras, notas e pautas.
Ouviríamos juntos as melodias mais gostosas e lhe contaria
sobre os instrumentos que fazem a música.
Aí, encantada com a beleza da música, ela mesma me pediria
que lhe ensinasse o mistério daquelas bolinhas pretas escritas sobre cinco linhas.
Porque as bolinhas pretas e as cinco linhas são apenas ferramentas
para a produção da beleza musical. A experiência da beleza tem de vir antes".
Rubem Alves



A CASA DE RUBEM ALVES
 http://www.rubemalves.com.br/cozinha.htm

Qual é o lugar mais importante da sua casa? Eu acho que essa é uma boa pergunta para início de uma sessão de psicanálise. Porque quando a gente revela qual é o lugar mais importante da casa, a gente revela também o lugar preferido da alma. Nas Minas Gerais onde nasci o lugar mais importante era a cozinha. Não era o mais chique e nem o mais arrumado. Lugar chique e arrumado era a sala de visitas, com bibelôs, retratos ovais nas paredes, espelhos e tapetes no chão. Na sala de visitas as crianças se comportavam bem, era só sorrisos e todos usavam máscaras. Na cozinha era diferente: a gente era a gente mesmo, fogo, fome e alegria.
"Seria tão bom, como já foi...", diz a Adélia. A alma mineira vive de saudade. Tenho saudade do que já foi, as velhas cozinhas de Minas, com seus fogões de lenha, cascas de laranja secas, penduradas, para acender o fogo, bule de café sobre a chapa, lenha crepitando no fogo, o cheiro bom da fumaça, rostos vermelhos. Minha alma tem saudades dessas cozinhas antigas...
Fogo de fogão de lenha é diferente de todos os demais fogos. Veja o fogo de uma vela acesa sobre uma mesa. É fogo fácil. Basta encostar um fósforo aceso no pavio da vela para que ela se acenda. Não é preciso nem arte nem ciência. Até uma criança sabe. Só precisa um cuidado: deixar fechadas as janelas para que um vento súbito não apague a chama. O fogo do fogão é outra coisa. Bachelard notou a diferença: "A vela queima só. Não precisa de auxílio.
                    
Cozinha


A chama solitária tem uma personalidade onírica diferente da do fogo na lareira. O homem, diante de um fogo prolixo pode ajudar a lenha a queimar, coloca uma acha suplementar no tempo devido. O homem que sabe se aquecer mantém uma atitude de Prometeu. Daí seu orgulho de atiçador perfeito..." Fogo de lareira é igual ao fogo do fogão de lenha. Antigamente não havia lareiras em nossas casas. O que havia era o fogo do fogão de lenha que era, a um tempo, fogo de lareira e fogo de cozinhar.
As pessoas da cidade, que só conhecem a chama dos fogões a gás, ignoram a arte que está por detrás de um fogão de lenha aceso. Se os paus grossos, os paus finos e os gravetos não forem colocados de forma certa, o fogo não pega. Isso exige ciência. E depois de aceso o fogo é preciso estar atento. É preciso colocar a acha suplementar, do tamanho certo, no lugar certo. Quem acende o fogo do fogão de lenha tem de ser também um atiçador.
O fogão de lenha nos faz voltar "às residências de outrora, as residências abandonadas mas que são, em nossos devaneios, fielmente habitadas" (Bachelard). Exupèry, no tempo em que os pilotos só podiam se orientar pelos fogos dos céus e os fogos da terra, conta de sua emoção solitária no céu escuro, ao vislumbrar, no meio da escuridão da terra, pequenas luzes: em algum lugar o fogo estava aceso e pessoas se aqueciam ao seu redor.
Já se disse que o homem surgiu quando a primeira canção foi cantada. Mas eu imagino que a primeira canção foi cantada ao redor do fogo, todos juntos se aquecendo do frio e se protegendo contra as feras. Antes da canção, o fogo. Um fogo aceso é um sacramento de comunhão solitária. Solitária porque a chama que crepita no fogão desperta sonhos que são só nossos. Mas os sonhos solitários se tornam comunhão quando se aquece e come.
Nas casas de Minas a cozinha ficava no fim da casa. Ficava no fim não por ser menos importante mas para ser protegida da presença de intrusos. Cozinha era intimidade. E também para ficar mais próxima do outro lugar de sonhos, a horta-jardim. Pois os jardins ficavam atrás. Lá estavam os manacás, o jasmim do imperador, as jabuticabeiras, laranjeiras e hortaliças. Era fácil sair da cozinha para colher xuxús, quiabo, abobrinhas, salsa, cebolinha, tomatinhos vermelhos, hortelã e, nas noites frias, folhas de laranjeira para fazer chá.
Ah! Como a arquitetura seria diferente se os arquitetos conhecessem também os mistérios da alma! Se Niemeyer tivesse feito terapia, Brasília seria outra. Brasília é arquitetura de arquitetos sem alma. Se eu fosse arquiteto minhas casas seriam planejadas em torno da cozinha. Das coisas boas que encontrei nos Estados Unidos nos tempos em que lá vivi estava o jeito de fazer as casas: a sala de estar, a sala de jantar, os livros, a escrivaninha, o aparelho de som, o jardim, todos integrados num enorme espaço integrado na cozinha. Todos podiam participar do ritual de cozinhar, enquanto ouviam música e conversavam. O ato de cozinhar, assim, era parte da convivência de família e amigos, e não apenas o ato de comer. Eu acho que nosso costume de fazer cozinhas isoladas do resto da casa é uma reminiscência dos tempos em que elas eram lugar de cozinheiras negras escravas, enquanto as sinhás e sinhazinhas se dedicavam, em lugares mais limpos, a atividades próprias de dondocas como o ponto de cruz, o frivolité, o crivo, a pintura e a música. Se alguém me dissesse, arquiteto, que o seu desejo era uma cozinha funcional e prática, eu imediatamente compreenderia que nossos sonhos não combinavam, delicadamente me despediria e lhes passaria o cartão de visitas de um arquiteto sem memórias de cozinhas de Minas.
As cozinhas de fogão de lenha não resistiram ao fascínio do progresso. As donas de casa, em Minas, por medo de serem consideradas pobres, dotaram suas casas de modernas cozinhas funcionais, onde o limpíssimo e apagado fogão à gás tomou o lugar do velho fogão de lenha. As cozinhas, agora, são extensões da sala de visitas. Mas isto é só para enganar. A alma delas continua a morar nas cozinhas velhas, agora transferidas para o quintal, onde a vida é como sempre foi. Lá é tão bom, porque é como já foi.
Eu gostaria de ser muitas coisas que não tive tempo e competência para ser. A vida é curta e as artes são muitas. Gostaria de ser pianista, jardineiro, artista de ferro e vidro - talvez monge. E gostaria de ter sido um cozinheiro. Babette. Tita. Meu pai adorava cozinhar. Eu me lembro dele preparando os peixes, cuidadosamente puxando a linha que percorre o corpo dos papa-terras, curimbas, para que não ficassem com gosto de terra. E me lembro do seu rosto iluminado ao trazer para a mesa o peixe assado no forno.
Faz tempo, num espaço meu, eu gostava de reunir casais amigos uma vez por mês para cozinhar. Não os convidava para jantar. Convidava para cozinhar. A festa começava cedo, lá pelas seis da tarde. E todos se punham a trabalhar, descascando cebola, cortando tomates, preparando as carnes. Dizia Guimarães Rosa: "a coisa não está nem na partida e nem na chegada


Jardim



Um amigo me disse que o poeta Mallarmé tinha o sonho de escrever um poema de uma palavra só. Ele buscava uma única palavra que contivesse o mundo. T.S. Eliot no seu poema O Rochedo tem um verso que diz que temos "conhecimento de palavras e ignorância da Palavra". A poesia é uma busca da Palavra essencial, a mais profunda, aquela da qual nasce o universo. Eu acho que Deus, ao criar o universo, pensava numa única palavra: Jardim! Jardim é a imagem de beleza, harmonia, amor, felicidade. Se me fosse dado dizer uma última palavra, uma única palavra, Jardim seria a palavra que eu diria."(Clique aqui para você ler um texto sobre jardins) Depois de uma longa espera consegui, finalmente, plantar o meu jardim. Tive de esperar muito tempo porque jardins precisam de terra para existir. Mas a terra eu não tinha. De meu, eu só tinha o sonho. Sei que é nos sonhos que os jardins existem, antes de existirem do lado de fora. Um jardim é um sonho que virou realidade, revelação de nossa verdade interior escondida, a alma nua se oferecendo ao deleite dos outros, sem vergonha alguma... Mas os sonhos, sendo coisas belas, são coisas fracas. Sozinhos, eles nada podem fazer: pássaros sem asas... São como as canções, que nada são até que alguém as cante; como as sementes, dentro dos pacotinhos, à espera de alguém que as liberte e as plante na terra. Os sonhos viviam dentro de mim. Eram posse minha. Mas a terra não me pertencia.



O terreno ficava ao lado da minha casa, apertada, sem espaço, entre muros. Era baldio, cheio de lixo, mato, espinhos, garrafas quebradas, latas enferrujadas, lugar onde moravam assustadoras ratazanas que, vez por outra, nos visitavam. Quando o sonho apertava eu encostava a escada no muro e ficava espiando. Eu não acreditava que meu sonho pudesse ser realizado. E até andei procurando uma outra casa para onde me mudar, pois constava que outros tinham planos diferentes para aquele terreno onde viviam os meus sonhos. E se o sonho dos outros se realizasse, eu ficaria como pássaro engaiolado, espremido entre dois muros, condenado à infelicidade.
Mas um dia o inesperado aconteceu. O terreno ficou meu. O meu sonho fez amor com a terra e o jardim nasceu.
Não chamei paisagista. Paisagistas são especialistas em jardins bonitos. Mas não era isto que eu queria. Queria um jardim que falasse. Pois você não sabe que os jardins falam? Quem diz isto é o Guimarães Rosa: "São muitos e milhões de jardins, e todos os jardins se falam. Os pássaros dos ventos do céu - constantes trazem recados. Você ainda não sabe. Sempre à beira do mais belo. Este é o Jardim da Evanira. Pode haver, no mesmo agora, outro, um grande jardim com meninas. Onde uma Meninazinha, banguelinha, brinca de se fazer Fada... Um dia você terá saudades... Vocês, então, saberão..." É preciso ter saudades para saber. Somente quem tem saudades entende os recados dos jardins. Não chamei um paisagista porque, por competente que fosse, ele não podia ouvir os recados que eu ouvia. As saudades dele não eram as saudades minhas. Até que ele poderia fazer um jardim mais bonito que o meu. Paisagistas são especialistas em estética: tomam as cores e as formas e constróem cenários com as plantas no espaço exterior. A natureza revela então a sua exuberância num desperdício que transborda em variações que não se esgotam nunca, em perfumes que penetram o corpo por canais invisíveis, em ruídos de fontes ou folhas... O jardim é um agrado no corpo. Nele a natureza se revela amante... E como é bom!
Mas não era bem isto que eu queria. Queria o jardim dos meus sonhos, aquele que existia dentro de mim como saudade. O que eu buscava não era a estética dos espaços de fora; era a poética dos espaços de dentro. Eu queria fazer ressuscitar o encanto de jardins passados, de felicidades perdidas, de alegrias já idas. Em busca do tempo perdido... Uma pessoa, comentando este meu jeito de ser, escreveu: "Coitado do Rubem! Ficou melancólico. Dele não mais se pode esperar coisa alguma..." Não entendeu. Pois melancolia é justamente o oposto: ficar chorando as alegrias perdidas, num luto permanente, sem a esperança de que elas possam ser de novo criadas. Aceitar como palavra final o veredicto da realidade, do terreno baldio, do deserto. Saudade é a dor que se sente quando se percebe a distância que existe entre o sonho e a realidade. Mais do que isto: é compreender que a felicidade só voltará quando a realidade for transformada pelo sonho, quando o sonho se transformar em realidade. Entendem agora por que um paisagista seria inútil? Para fazer o meu jardim ele teria que ser capaz de sonhar os meus sonhos...
Sonho com um jardim. Todos sonham com um jardim. Em cada corpo, um Paraíso que espera... Nada me horroriza mais que os filmes de ficção científica onde a vida acontece em meio aos metais, à eletrônica, nas naves espaciais que navegam pelos espaços siderais vazios... E fico a me perguntar sobre a perturbação que levou aqueles homens a abandonar as florestas, as fontes, os campos, as praias, as montanhas... Com certeza um demônio qualquer fez com que se esquecessem dos sonhos fundamentais da humanidade. Com certeza seu mundo interior ficou também metálico, eletrônico, sideral e vazio... E com isto, a esperança do Paraíso se perdeu. Pois, como o disse o místico medieval Angelus Silésius:


Se, no teu centro
um Paraíso não puderes encontrar,
não existe chance alguma de, algum dia,
nele entrar.
Este pequeno poema de Cecília Meireles me encanta, é o resumo de uma cosmologia, uma teologia condensada, a revelação do nosso lugar e do nosso destino:
"No mistério do Sem-Fim,
equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro:
no canteiro, urna violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,
entre o planeta e o Sem-Fim,
a asa de urna borboleta."
Metáfora: somos a borboleta. Nosso mundo, destino, um jardim. Resumo de uma utopia. Programa para uma política. Pois política é isto: a arte da jardinagem aplicada ao mundo inteiro. Todo político deveria ser jardineiro. Ou, quem sabe, o contrário: todo jardineiro deveria ser político. Pois existe apenas um programa político digno de consideração. E ele pode ser resumido nas palavras de Bachelard: "O universo tem, para além de todas as misérias, um destino de felicidade. O homem deve reencontrar o Paraíso." (O retorno eterno, p 65).




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